Quem adora viajar de moto como eu, provavelmente já ouviu falar da lendária BR-319.
Ela foi construída em 1973 com seus 885 km de extensão. Mas logo nos anos seguintes, a estrada entrou em processo de decomposição e, 15 anos depois de concluída, ficou abandonada e passou a ser considerada por muitos anos intransitável. Mas alguns anos atrás, com a colocação de pontes e com os reparos na estrada, voltou a ser transitável para veículos.
Essa rodovia liga por terra as capitais de Rondônia e do Amazonas.
Apelidada de Rodovia Fantasmapor ter sido abandonada por longos anos, amedronta até motociclistas com anos de estrada, principalmente na época de chuvas, por acumular lama e formar atoleiros, e fora desta época, por formar “poaca”, a poeira acumulada na estrada, cobrindo os buracos.
Minha vontade de conhecer o Brasil e de fazer essa rota de moto surgiu uns tempos atrás, e cresceu com as fronteiras dos países vizinhos estarem fechadas por conta da pandemia.
Fui em novembro, ainda no começo do inverno amazônico, a temporada de chuva dos estados do Norte, quando a previsão era de pouca lama, mas que já poderia ser o bastante para me divertir. O inverno amazônico é uma denominação popular para grande intensidade pluviométrica na região, que ocorre entre o dezembro a maio, sendo mais intensa e frequente de janeiro a março.
Deixei a organização deste trecho da viagem por conta da Tagino Adventure Tour, agência de mototurismo. Uma amiga iria realizar apenas este trecho com a moto alugada, mas eu não quis usar a moto disponibilizada para locação, a XRE 300, por ser alta para mim e fui liberada para ir com a minha própria, uma Honda XR 250 Tornado,e também porque iria continuar a viagem pelo Norte do Brasil.
A escolha da Tornado para esta viagem, foi porque ela é leve, confiável (dificilmente terá algum problema mecânico), mesmo que apresente problema, qualquer oficina de moto conseguirá consertar, tem peças que são fáceis de encontrar se precisar, possui motor potente o suficiente para o off-road, tem baixo custo de manutenção e além de estar rebaixada, era o que eu tinha.
Fiz alguns ajustes na minha Tornado para esta viagem: coloquei um tanque de plástico com capacidade maior de gasolina, o protetor de Carter, troquei a câmara dos pneus de 2 por 4 mm ─ dianteiro e traseiro.
Em Porto Velho fiz a troca do par de pneus da Tornado, o dianteiro Karoo 3 e o traseiro Enduro 3 Sahara por pneus off-road emprestados do Tagino, para andar na BR 319 até Manaus.
BR-319: desafio a caminho de Manaus
Como relatei no post anterior, depois de atravessar sozinha os estados de São Paulo, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Rondônia, em Porto Velho juntei-me a um grupo de motociclistas. A ideia deste grupo era viajar o mais “raiz” possível e por isso a opção de acampar pela estrada foi super bem vinda.
Nosso guia foi o Alfredo Souza do Diário de Motochileiro, que realizou a façanha de viajar de Biz pelas Américas até Alaska e acampando, no estilo “motomochileiro”.
Primeiro dia: de Rondônia a Ipixuna (Humaitá)
Saímos de Porto Velho no dia 18 de novembro e durante quatro dias nos aventuramos com destino a Manaus.
O inicio da estrada ainda era comum avistar fazendas de criação de gado, que aos poucos a paisagem foi substituída pela mata mais densa.
Fizemos uma parada no Km 100, para esticar as pernas.
Pegamos 205 km de asfalto em boas condições na BR-319, passando pela divisa entre os estados de Rondônia e do Amazonas até a cidade de Humaitá, onde almoçamos e abastecemos as motocicletas na BR 230, no posto que fica logo na entrada da cidade.
Na cidade de Humaitá, fizemos um tour pela cidade, e paramos em frente ao Rio Madeira, foi um momento de descontração onde falamos um pouco de tudo e ficamos apreciando os navios e a linda vista do rio, e antes de seguir a viagem fizemos as compras no mercado, porque iríamos acampar.
O tempo estava bom, estava calor, mas não estava extremamente quente, esta é a vantagem de viajar nesta época do ano.
Neste dia, retornamos pela BR-230 (Rodovia Transamazônica), rodamos mais 30 km de asfalto e 10 km de estrada de terra até nossa parada, um lugar chamado Ipixuna, no distrito de Humaitá, onde acampamos. É um vilarejo com pouquíssimas casas, situado na própria BR-230, à beira do Rio Ipixuna.
Ficamos do lado do rio, no bar e vendinha do Sr. Jânio ou “senhor Barbudo”, como é conhecido. Ele nos cedeu espaço para acampar e também ofereceu quartos pagos com ar-condicionado para quem quisesse ficar no conforto. A mim ele disponibilizou um quarto sem ar-condicionado, mas confortável o bastante para ter um bom sono e descanso.
No final da tarde, tomamos banho no rio, que estava a uma temperatura deliciosa, e curtimos o lindo pôr do sol. À noite fizemos churrasco.
Segundo dia: de Ipixuna à Fazenda Catarinos
Na manhã seguinte, fizemos nosso café da manhã e partimos de Ipixuna retornando pela mesma rodovia, a BR-230 (Rodovia Transamazônica), percorrendo os 40 km até o cruzamento com a BR-319.
Seguimos pela BR-319 sentido Manaus, sendo 40 km de asfalto em bom estado e 60 km de terra até o outro distrito de Humaitá, a Realidade (km 600 da BR-319).
É comum na rodovia BR 319, ter trechos de terra que intercala com a antiga pavimentação totalmente degradada e esburacada. Na minha opinião é muito perigoso conduzir em alta velocidade neste tipo de chão, pois por alguns momentos a motocicleta chegou a descontrolar e sem falar do estrago que poderá causar nas rodas com os pneus murchos.
Neste dia almoçamos no restaurante a beira da estrada, que fica do outro lado do posto de gasolina na Realidade, a Leia Restaurante e Lanchonete, comida simples e boa de um casal jovem muito simpático, com sonho de um dia ver esta rodovia com movimento intenso.
Abastecemos as motos e tambémcompramos mais combustível e levamos em garrafa PET para abastecer mais adiante. Depois se encontra gasolina somente a 350 km à frente deste vilarejo, na comunidade de Igapó-Açu, que é vendida no galão.
Pelo caminho encontramos o Genghis Souza,- @na_velocidade_da_vida , motociclista de Manaus e mais dois amigos que estavam seguindo para o sentido sul. Vale muito a pena comentar aqui, como é sensacional este mundo de duas rodas. Eu conhecia o Genghis somente através da rede social e inclusive conversei com ele por WhatsApp alguns meses antes de iniciar esta viagem, me passando algumas dicas da viagem. E encontrar ele na BR 319, foi muita coincidência e eu costumo dizer que se tivesse combinado não teria dado certo.
Fez calor e não choveu neste segundo dia. Na verdade, desde que saímos de Porto Velho, o tempo permaneceu encoberto, então não ficou extremamente quente. De certa forma, isso nos favoreceu, apesar de que esperávamos ter chuva.De Realidade até a Fazenda Catarinos, onde acampamos, foram 100 km de estrada de chão, que intercalava com asfalto degradado.
Chegamos à Fazenda Catarinos, na região de Tapauá, quando o sol já estava se pondo. No local, vive uma família de migrantes de Santa Catarina. Os proprietários acolhem viajantes, frequentemente motociclistas, e cedem espaço para acampar, sem cobrar pela estadia.
Armamos nossas barracas em uma escola que não estava em atividade por conta da pandemia e, na cozinha de uma casa que serve de apoio também para acampar, preparamos o jantar. O prato foi macarrão com linguiça calabresa (delicioso!), feito pelo Alfredo motochileiro. A casa tem chuveiro de água fria e o toalete fica numa casinha feita de madeira, ao lado do galinheiro, e a eletricidade é fornecida por um gerador, que permanece ligado até certa hora da noite.
Outra opção de lugar para acampar neste trecho da BR 319, são as torres da Embratel, instaladas em chão cimentado, dentro de um cercado. Ouvi dizer que tem em torno de 40 torres da Embratel ao longo da rodovia que garantem o bom funcionamento de telecomunicações da região.
Tem também a Pousada do Alemão, nas proximidades da fazenda, é a dica para quem optar por mais conforto.
Essa noite foi gostosa, o céu abriu timidamente e estava estrelado. O grupo contemplava o tempo todo o contraste dos pontos brilhantes na imensidão escura e se perguntava se iria ou não chover, porque queríamos chuva e lama no dia seguinte.
De madrugada, por volta das 4 horas, eu acordei com o barulho de trovão e de chuva. Fiquei muito contente, porque iria molhar o chão. Mas ao mesmo tempo a preocupação invadiu minha mente, porque comecei a imaginar cenas da moto atolada em meio à BR-319 e eu caindo inúmeras vezes, passando pelo maior perrengue.
Terceiro dia: Da Fazenda Catarinos a Igapó-Açu
Para alegria do grupo, continuou chovendo forte até o amanhecer. Acordamos e preparamos nosso café da manhã. Fizemos café, ovos mexidos e pão de forma em um fogareiro a gás e, para acompanhar, tínhamos manteiga, creme de avelã, biscoitinhos… Só gostosuras!
Ao sair da fazenda, a chuva estava mais fraca. O chão estava molhado e todos saímos animados, mas também preocupados, sem saber o que viria pela frente.
E então finalmente conseguimos pegar um pouco de lama na estrada! Com pneus próprios para o off-road, a pilotagem foi muito fácil na Tornado e pude me divertir. Mas ficou a sensação de “quero mais”, queríamos mais lama, porque um pouco de perrengue seria bom para depois contarmos a história.
O tempo ficou chuvoso durante o dia inteiro. Dizem que o trecho mais crítico abrange todo o percurso entre Realidade e Igapó-Açu, conhecido como o “trecho do meio”, porque apresenta grandes problemas como buracos e formação de atoleiros, principalmente quando chove, além de pontes de madeira deterioradas e precárias. Caminhões e ônibus ficam facilmente presos na lama e precisam da ajuda de outro veículo para serem desatolados.
Logo no início vimos um carro caído no canteiro inclinado da estrada. A estrada estava escorregadia. E à frente encontramos veículos militares que puxavam um caminhão, e precisamos esperar alguns minutos. De qualquer forma, não era nada que motos leves com pneus off-road não pudessem encarar. No caminho, observei máquinas e tratores trabalhando para manter a estrada transitável.
Almoçamos no Bar e Restaurante do Raimundo que fica em um ponto estratégico do trecho do meio, no km 366.
Dentre o grupo, houve algumas quedas, mas nada que fosse grave, foi só para depois dar risada dessas cenas.
Finalmente chegamos à comunidade Igapó-Açu, pertencente à cidade de Manicoré, todos cobertos de lama, porém, felizes e de alma lavada.
Cansados depois de um longo dia de chuva, decidimos ficar em pousada pelo conforto. O grupo se dividiu e se hospedou na Pousada Beira Rio e na Pousada da Dona Mocinha, onde jantamos. Assim, nosso guia Alfredo não cozinhou e teve o merecido descanso.
Na pousada Beira Rio conheci a dona Ana, que contou a história da BR 319. Ela contou que quarenta anos atrás quando a estrada era toda asfaltada, tinha um posto de gasolina no Igapó Açu, mas com a degradação da estrada, todos que tinham algum comércio na beira, fecharam a porta. Atualmente esta região, virou Reserva de Desenvolvimento Sustentável de Igapó Açu não podendo ter posto de gasolina.
Um fato curioso e interessante é o Projeto Pé-de-Pincha, da Universidade Federal de Amazonas, que consiste em coletar os ovos de tracajá (quelônio ou tartaruga) monitorando na unidade de conservação e com finalidade de proteger até atingirem o tamanho que permita a sobrevivência e soltura na natureza.
De Catarinos a Igapó-Açu, rodamos aproximadamente 250 km de chão molhado.
Quarto dia: de Igapó-Açu a Manaus
O último trecho da BR-319 foi de Igapó-Açu a Manaus, no total de 250 km, com 50 km de chão e 200 km de asfalto.
Como minha moto não tinha combustível para rodar até o próximo posto de gasolina, comprei de um morador local que comercializa o combustível por 7 reais o litro, somente o suficiente para chegar ao próximo posto de abastecimento. Achei caro porque o litro custava em torno de 4,50 reais, mas se não fosse isso não chegaria.
Saindo de Igapó-Açu, pegamos uma balsa para a curta travessia do rio Igapó-Açu que durou cerca de 10 minutos.
Depois rodamos os 50 últimos quilômetros de terra e 100 km de asfalto até Careiro Castanho, onde abastecemos e almoçamos.
Percebi que a medida que voltava à civilização, mais próximo de Manaus, observava-se mais carros, mais asfalto em boas condições e muito mais áreas devastadas e queimadas.
Em conversa com moradores locais em Igapó Açu, a opinião era de que a estrada seria muito útil, mas ao mesmo tempo, eles queriam ver a proteção da floresta.
De Careiro da Várzea, enfim, atravessamos o Rio Amazonas também de balsa, que levou 1 hora até Manaus. Desembarcamos no Porto da Ceasa.
Durante a travessia foi lindo ver o encontro das águas que é a junção do Rio Solimões com o Rio Negro, mas o que o torna uma atração turística é o fato de as águas não se misturarem por muitos quilômetros.
Manaus
Passei três noites em Manaus com a intenção de descansar. Escolhi me hospedar no Comfort Hotel, porque a equipe do carro de apoio ficaria neste hotel e eu teria de trocar os pneus para devolver os que peguei emprestados. Aproveitei também para levar roupas na lavanderia.
Reservei o primeiro dia na capital do Amazonas para fazer um passeio de barco com os meus companheiros motociclistas. Conhecemos uma fazenda de criação de pirarucus, visitamos a comunidade indígena Dessana para entender um pouco da cultura, da gastronomia e da tradição deste povo (até dancei com os índios), e tivemos um incrível banho com os botos. Foi bom e divertido demais!
À noite, saímos para o restaurante e o bar na região central, onde estão a praça principal e o Teatro Amazonas.
No dia seguinte, grupo da BR-319 partiu cada um para sua casa de avião e eu continuaria minha aventura com minha valente Tornado XR250 rumo a Uiramutã, em Roraima.
Mas ainda precisava levar a moto para lavar, trocar o óleo e os pneus, e limpar o filtro de ar, além de deixar roupas na lavanderia. Afinal, tão importante quanto dar uma folga para a moto é prepará-la para os próximos desafios!
Depois, na parte da tarde, fiz um tour pela cidade. Claro, aproveitei para tirar algumas fotos e assim encerrei minha passagem por Manaus.
Com certeza, essa viagem no estilo motochileiro foi uma ótima experiência. Obrigada, Alfredo, por compartilhar conosco seu conhecimento e, Tagino Adventure Tour, por nos proporcionar este divertimento e a viagem “raiz” maravilhosa!
Na manhã do dia seguinte, debaixo da chuva torrencial, parti rumo a Boa Vista, capital de Roraima. Mais uma aventura cheia de desafios!
BR-319 tem 51 anos de história
A BR-319/AM tem uma extensão de 885 km, iniciando em Manaus e terminando em Porto Velho. Batizada como Rodovia Álvaro Maia, é a única ligação rodoviária do estado do Amazonas com o restante do país pela BR-364, a Rodovia Marechal Rondon (que começa em São Paulo e passa por Goiás, Mato Grosso, Rondônia e Acre).
Foi construída nos anos 1970, mas já na década seguinte, de acordo com reportagens de TV, o asfalto foi transformado em pedaços. Por isso, a estrada apresenta terríveis condições de tráfego aos motoristas que por lá passam.
Chegou até ao ponto de se tornar abandonada e intransitável durante algumas dezenas de anos e apelidada de “Rodovia Fantasma”. No período de chuvas, é frequente ver caminhões e ônibus sendo retirados da lama. Enquanto o lamaçal é um sofrimento para quem depende da estrada para trabalhar, é um atrativo e uma diversão para motociclistas aventureiros.
Porém, a BR-319 não é apenas terra. É parte da floresta amazônica também. Existe verde, natureza, e vida!
E a aventura continua, Uiramutã na proa!